quarta-feira, setembro 13, 2006

"Ao Redor do Fogo"


Existe uma pequena região banhada pelo rio Douro, e enaltecida pela vontade dos deuses, numa recôndita paisagem submersa na bruma e nas entranhas do Vale do Bestança e que por entre moinhos, pontes românicas, casarios de pedra granítica e arqueologia romana esconde a aldeia de Boassas, local que à primeira vista poderá parecer ao visitante uma singela e característica aldeia rural do vale do Douro. Porém, este lindíssimo povoado transformou-se com a entrada da primavera num encontro internacional de ceramistas. Um intercâmbio cultural, que na sua segunda edição volta a proporcionar às suas gentes - unidas na Associação Por Boassas, que tornou possível este evento - a oportunidade de contar novas histórias, novos fragmentos de velhos contos, e de recriar o imaginário dos seus visitantes, através desses excêntricos artistas capazes de transformar o barro em objectos vivos.
Os dias em Boassas decorreram entre a verdade das coisas simples; a fé da montanha, a luz do meio-dia, a insistência do vento e da chuva que, no meio do jardim, assomava e assediava os ceramistas; Entretanto passava o ansioso decorrer dos dias, por entre o sabor da terra, (o barro nos alfares e o vinho nas pipas) e a harmonia da argila que nas suas mãos nuas tomava formas incógnitas, submersas por fim no interior de um fogo que as libertava. Obras que se iam lavrando dia a dia através do fogo, da água e da terra...- perante a atenta e apaixonada observação da Sofia e do Manuel e dos seus incansáveis colaboradores Nascimento e Paula -, corroboradas por cada um dos alquimistas que participava no processo: A calidez do verniz de cádmio/selénio, fundindo-se no calor do forno nos volumes polimórficos de Jesús Castáñon, a investigação minimalista do Juan Ortí, as formas térreas de Fernando Malo, as arquitecturas industriais de Xavier Monsalvatje, os líricos jardins de Myriam Jiménez, as poéticas caixas de Thomas Weber, o mundo alienígena de Juan Luís, a bucólica arquitectura suburbana de Heitor Figueiredo e a estética orgânica de Sofia Beça iam-se alternando com a construção de placas toponímicas, aguçando a curiosidade dos visitantes como se foram épicos Serpa Pintos traçando um plano cartográfico virtual para a povoação.
Ao cair da tarde os caminhos enchiam-se de silêncio, da paz dos carvalhos sagrados e da sombra das violáceas glicínias. Esse mutismo venturoso era subitamente rasgado pela algazarra das crianças, e pelo deambular descontraído dos ceramistas após um dia de trabalho. Era o momento em que se divertiam por entre cervejas e vinho verde no café do Sr. Fernando, o qual servia ao mesmo tempo de sala de exposições, momento de tertúlia, de troca de opiniões, de ideias, de soluções técnicas ou apenas do usufruir da sincera hospitalidade dos aldeãos, com os seus biscoitos, bolos de creme ou chocolate, delicioso bacalhau, e os seus saborosos cozinhados Tudo se tornava atractivo neste universo particular dos ceramistas, longe do snobismo de outras expressões plásticas mais “tradicionais” como a pintura, a escultura ou mais inovadoras como a “net-art” e as novas tecnologias; relegadas quantas vezes para a sobranceria das galerias, e para a ditadura do mercado, incapazes porém de compartilhar encontros de conhecimento, ideias ou emoções... Aquela experiência resultava excitante, pelo contacto directo com a argila, pelo sortilégio do fogo como prolongamento de si próprios, enquanto a fogueira de lenha ou de gás crescia com astúcia invocando os seus próprios sonhos. E, em todo este delir, ouviam-se conversas sobre ceramistas como Arcádio Blasco, Enric Mestre ou Garraza, e artistas como Miró, Picasso, Tàpies, Chillida..., que se renderam ao sortilégio da cerâmica, fundindo o conhecimento técnico dos artesãos com a criatividade dos artistas. Como citaria o historiador Roland Penrose sobre a união Artigas-Miró; “Conhecedor das técnicas chinesas e japonesas, e com a sensibilidade de quem domina todos os segredos do seu ofício, Llorens Artigas tornou possível que, artistas e artesãos, ao trabalhar em conjunto, se complementem com as suas respectivas qualidades”. Alguns desses artistas de renome viriam a reconhecer essa co-autoria como artesãos, outros porém, como Barceló, negá-la-iam. No entanto, e isso era o mais importante, ouvia-se essa constante troca de conhecimentos e experiências entre artesãos e artistas, ou através da visita de algum curioso, desfazendo assim qualquer tipo de tabus estabelecidos. Uma noite, à volta do fogo, reapareceu através da obscuridade a ancestral “Soenga”, demonstração do Mestre César Teixeira, - o qual, indubitavelmente, poderia concorrer com o mais conceptual Richard Long -, com o vetusto Barro negro de Gondar, e o feroz mistério de um fogo resplandescente. E por entre as chamas, ao fim, parecia escutar-se um múrmurio; “arde bem o que bem fizésteis, que seja de bom proveito aquilo que escolhesteis numa entrega sem fim”.

Rosa Ulpiano, Valência, 8 de Junho de 2006

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